levei um tiro
é,
quando se leva um tiro assim
dentro de casa
não se pergunta de onde veio a bala
é como se não fizesse diferença agora
eu tô aqui
caído
o tapete tá escarlate
e eu tô segurando o rombo com a mão
tem uma paralisia foda aqui
é como se eu tivesse as vésperas de um mistério
se eu não fizer nada, assim,
ficar aqui até escorrer tudo
eu descubro
o que tem do outro lado
é a resposta inaugural
mas dá medo
e aí eu penso que devia tentar levantar e alcançar meu telefone
mas com a porra da mão cheia de sangue
nem sei se consigo desbloquear a tela
qual era mesmo a minha senha?
não dá tanta vontade de pagar o preço
quando a gente tá assim tão diante
esses pensamentos vem tão rápido que
a dor fica opcional, assim
o sangue é quente e meio pegajoso
e isso me dá calafrios
mas nem é a hora pra isso
se eu levantar e pegar o telefone
eu vou ligar pra quem?
samu? minha mãe?
minha ex?
eu olho pra cima e vejo o vestígio:
um pequeno furo na janela
foi dali que a bala entrou?
e já me perco agora tentando saber do trajeto
do projétil
calma
volta
eu tava falando do telefone
ligar pro samu
que é ele que vai salvar minha vida
minha mãe ficaria histérica
mas se eu ligar, vou ter que esperar.
talvez eu consiga levantar e pedir ajuda
mas
e se o atirador
tá ali fora?
meu deus
como é difícil ter que decidir
o que fazer depois
de levar um tiro
eu não sei quanto tempo passou
se foram 15 anos
ou um minuto
ou oito séculos
só sei que minha camisa tá pesada
de vermelho.
pego o telefone e abro a câmera
quero ver meu rosto
por incrível que pareça
só suor e um leve inchasso abaixo dos olhos
pensei que estaria chorando, mas não
a curiosidade de saber
se consigo
sobreviver
é algo assustador
todos os filmes que já assisti
e que inventei
voltam na minha cabeça
como se fossem saberes ancestrais
é como se eu soubesse que posso retirar a bala
e estancar a ferida
retiro a mão
e olho
eu quase coloco meu almoço pra fora
tento tatear e sinto a bala
alojada
nas minhas tripas
como uma espinha
tento retirá-la
ela sai em minha mão
e o alivio surge
em forma de uma dor e mais sangramento
antes não doía,
agora doi.
abro a caixa de primeiros socorros que nunca usei
jogo alcool direto no buraco
e sinto-me queimando
é como se eu merecesse essa dor
porque a história ficará mais emocionante
quando eu contar
pego algodão, fita e uma toalha
eu tampo o buraco
e me sinto ali
vivo.
o telefone toca
e eu atendo
converso com meu chefe
respondo sobre a reunião de mais tarde
e confirmo minha presença
não digo nada
sobre o vermelho
sobre a bala
venci
.
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