top of page
Caio Ribeiro

I'm Crazy* (1945), de J. D. Salinger

*traduzido por Caio Augusto Ribeiro

 

ERA TIPO oito da noite, escuro, chovendo, frio pra burro, e o vento estava fazendo aquele barulho de filme de terror, sabe, tipo quando o velho bêbado e rico é assassinado. Eu estava ali, parado, perto do canhão no topo da colina Thomsen, praticamente morrendo de frio, olhando as grandes janelas voltadas para o sul do ginásio - brilhando grandes, brancas e burras, como as janelas de qualquer ginásio, e era isso (mas talvez você nunca tenha ido a um internato).


Eu tava só com um casaquinho e sem luvas. Alguém tinha surrupiado meu sobretudo de pelo de camelo na semana passada, e as luvas estavam na droga do bolso. Meu amigo, eu estava congelando. Só um maluco teria ficado ali. Sou eu. O maluco. Tô te falando, eu tenho mesmo uns parafusos a menos. Acontece que eu tinha que ficar ali, sabe, dar adeus à juventude daquele lugar, como se eu fosse um velhote. A escola inteira estava lá embaixo no ginásio, assistindo ao jogo de basquete contra os caras da Saxon Charter, e eu estava ali para sentir o adeus.


Eu fiquei ali parado - meu amigo, eu estava literalmente congelando - e fiquei dizendo adeus pra mim mesmo, "Adeus, Caulfield. Adeus, seu idiota” fiquei vendo eu mesmo, jogando futebol americano com o Buhler e o Jackson, bem antes de escurecer naquelas noites de setembro, e eu sabia que nunca mais jogaria futebol americano com os mesmíssimos caras na mesmíssima hora. Era como se o Buhler, o Jackson e eu tivéssemos feito algo que morreu e foi enterrado, e só eu sabia disso, claro, e ninguém estava no funeral a não ser eu. Então eu fiquei ali, congelando.


O jogo contra os idiotas da Saxon Charter estava no segundo tempo, e dava pra ouvir todo mundo gritando: de um lado do ginásio, a galera da Pentey gritando altão, e do outro, a torcida da Saxon Charter, fina e fraca, porque a galera da Saxon nunca trazia mais do que o time, alguns reservas e uns técnicos. Dava pra saber bem quando o Schutz, o Kinsella ou o Tuttle faziam um ponto contra os caras, porque aí a torcida da Pentey ia à loucura. Mas eu estava só meio interessado em quem estava ganhando, pra falar a verdade. Eu estava congelando e estava ali só para dar adeus, para estar no funeral de mim, do Buhler e do Jackson jogando futebol americano naquelas noites de setembro - e, finalmente, em um dos gritos de torcida, eu senti o adeus como uma faca de verdade, tô te falando, eu estava totalmente no funeral.


Aí, do nada, depois do negócio da faca, eu comecei a descer correndo a colina Thomsen, com as malas batendo com tudo nas minhas pernas. Corri até o Portão; aí parei e respirei fundo; depois corri atravessando a Rota 202 - estava congelada e eu escorreguei, pra variar, quase quebrei o joelho - e então sumi na Avenida Hessey. Sumi. Você sumiria toda vez que atravessasse uma rua naquela noite. Sério mesmo.


Quando cheguei na casa do velho Spencer - era pra lá que eu tava indo - coloquei as malas na varanda, toquei a campainha com força e rapidez e coloquei as mãos nas orelhas - meu amigo, doía pra burro. Comecei a falar com a porta. "Vai, vai!" eu disse. "Abre logo. Estou congelando." Finalmente a sra. Spencer apareceu.


- Holden! - ela disse - Entre, querido! - Ela era uma mulher legal, sabe. O chocolate quente dela aos domingos era uma porcaria, mas dava para engolir.


Eu entrei rápido na casa.


- Você deve estar morrendo de frio! Está encharcado,- disse sra. Spencer. Ela não era do tipo de mulher com quem você podia estar só um pouco molhado: ou você estava completamente seco, ou estava encharcado. Mas ela não perguntou o que eu estava fazendo fora dos limites dos estudantes, então pensei que o velho Spencer já tinha adiantado a ela o que aconteceu.


Coloquei as malas no corredor e tirei o chapéu - Tô te falando, eu mal conseguia mexer os dedos o suficiente para tirar o chapéu. Eu disse: "Como vai, sra. Spencer? E a gripe do sr. Spencer? Ele já se recuperou bem?"


- Recuperado! - Sra. Spencer disse - Deixe que eu pego o seu casaco, querido. Pronto... Holden, ele está se comportando como um perfeito sei-lá-o-quê. Pode ir, querido. Ele está no quarto.


O velho Spencer tinha o próprio quarto ao lado da cozinha. Ele devia ter uns sessenta anos, talvez até mais, e um jeito sempre meio meia-fase, sabe? Se você pensasse no velho Spencer, tipo, se você se perguntasse o que a vida ainda tinha pra ele, seria meio óbvio dizer que tudo meio que teria acabado para ele e tal. Mas se você pensasse nele assim, estaria pensando errado: estaria pensando demais. Se pensasse nele o suficiente, na medida exata, você saberia que ele estava indo benzão. Claro, sempre com este jeito meio meia-fase de curtir a vida e as coisas e tal. Eu também gosto pra burro disso tudo, das coisas e tal, mas só as vezes. Às vezes isso me faz pensar que talvez os velhos tenham uma vida melhor. Mas eu não trocaria de lugar, não. Não gostaria de gostar quase de tudo o tempo todo, se fosse só de desse jeito meio meia-fase.


O velho Spencer estava sentado na grande poltrona do quarto dele, todo enrolado na manta navajo que ele e a sra. Spencer compraram no Parque Yellowstone há uns oitenta anos. Eles provavelmente se divertiram bastante comprando essas coisas dos índios.


- Vamos, Caulfield! - o velho Spencer gritou pra mim - Entre, rapaz!


Eu entrei.


TINHA uma cópia aberta da Atlantic Monthly de cabeça para baixo no colo dele, e comprimidos espalhados por toda parte, garrafas e uma bolsa de água quente. Eu detesto ver uma bolsa de água quente, especialmente num velho. Não é legal, sério, mas é assim que eu me sinto, poxa... O velho Spencer definitivamente parecia nocauteado. Ele definitivamente não parecia um cara que algum dia tenha se comportado como um perfeito sei-lá-o-quê. Provavelmente a sra. Spencer gostava de achar que ele estava agindo assim, como se ela quisesse pensar que o velho ainda estava na flor da idade.


- Eu recebi seu recado, senhor, - eu disse pra ele -Eu teria vindo de qualquer maneira antes de ir embora. Como tá essa gripe?"


- Se eu me sentisse melhor, rapaz, teria que chamar o médico, - disse o velho Spencer. Aquela frase o pegou de jeito na gargalhada - Sente-se, rapaz, - ele disse, ainda rindo. - Por que, pelo nome de Júpiter, você não está no jogo?


Me sentei na beiradinha da cama. Parecia bem com a cama de um velho. Eu disse: "Bem, eu fiquei lá no jogo por um tempo, senhor. Mas vou embora hoje à noite, em vez de amanhã. O Dr. Thurmer disse que eu poderia ir hoje, se realmente quisesse. Então, vou."


- Bem, parece que você escolheu a dedo a noite perfeita - disse o velho Spencer. Ele ficou refletindo sobre isso por um momento - Vai embora hoje à noite, é? - ele perguntou.


- Sim, senhor - eu disse.


Aí ele disse assim pra mim “o que foi que o Dr. Thurmer disse a você, rapaz?”


- Bom, ele até que foi bem legal, do jeito dele, claro, o senhor sabe, - eu disse - Ele falou sobre a vida ser um jogo. Sabe, como você deve jogar de acordo com as regras e tal. Coisas assim. Ele me desejou muita sorte e tal. No futuro e tudo mais. Esse tipo de coisa, sabe?


Eu realmente acho que o Thurmer foi legal comigo, juro, mesmo com aquele jeitão meio tosco dele, aí acabei contando pro velho Spencer algumas outras coisas que o Thurmer me disse. Sobre me esforçar na vida, se eu quisesse ir pra frente e tal. Até inventei umas coisas, na real, o velho Spencer estava prestando atenção com tanta concentração e acenando com a cabeça o tempo todo que fiquei meio sem jeito.


Então o velho Spencer me perguntou: Você já comunicou seus pais?


- Não, senhor, - eu disse - Não me comuniquei com eles porque vou vê-los hoje à noite.


O velho Spencer balançou a cabeça de novo. Ele me perguntou: Como eles vão reagir às boas novas?


- Bem, - eu disse, - eles odeiam esse tipo de coisa, né? E essa é a terceira escola da qual sou expulso. É... sem brincadeira - eu disse.


Dessa vez, o velho Spencer não balançou a cabeça. Eu estava incomodando ele, coitado. De repente, ele levantou a Atlantic Monthly do colo, como se tivesse ficado pesada demais, e a jogou na direção da cama. Errou feio. Eu me levantei, peguei a revista e coloquei na cama. Do nada, tudo que eu mais queria era sumir dali.


O velho Spencer disse: O que há com você, rapaz? Quantas matérias você fez neste semestre?


- Quatro - eu disse.


- E quantas você reprovou? -  ele perguntou.


- Quatro - eu disse.


O velho Spencer começou a encarar o ponto no tapete onde a Atlantic Monthly tinha caído quando ele tentou jogá-la na cama. Ele disse: Eu te reprovei em história porque você não sabia absolutamente nada. Você nunca estava preparado, nem para as provas nem para as leituras diárias. Nem uma vez. Duvido que tenha aberto o seu livro de história uma única vez durante o semestre, abriu?


Eu disse a ele que dei uma olhada no livro algumas vezes, só para não magoar os sentimentos dele. Ele achava história uma coisa realmente importante. Tudo bem pra mim se ele achasse que eu era um cara bem burro, mas eu não queria que ele pensasse que eu tinha ignorado o livro dele e tal.


- Sua prova está na minha cômoda, ali, - ele disse - Traz aqui.


Fui até lá, peguei a prova e entreguei a ele, sentando de novo na beiradinha da cama.


O velho Spencer pegou minha prova como se fosse algo contagioso que ele tivesse que manusear pelo bem da ciência ou algo assim, tipo o Pasteur ou algum desses caras.


Ele disse: "Estudamos os egípcios de 3 de novembro até 4 de dezembro. Você escolheu escrever sobre eles para a questão de redação, a partir de uma seleção de vinte e cinco tópicos. Isso é o que você teve a dizer:


- Os egípcios eram uma raça antiga de pessoas que viviam em uma das regiões mais ao norte da África, que é um dos maiores continentes no Hemisfério Oriental, como todos sabemos. Os egípcios também são interessantes para nós hoje por diversas razões. Além disso, você lê sobre eles frequentemente na Bíblia. A Bíblia está cheia de anedotas divertidas sobre os antigos faraós. Todos eles eram egípcios, como todos sabemos...


O velho Spencer olhou pra mim.


- Na outra linha, - ele disse - O que é mais interessante sobre os egípcios eram seus hábitos. Os egípcios tinham muitas maneiras interessantes de fazer as coisas. A religião deles também era muito interessante. Eles enterravam seus mortos em tumbas de uma maneira muito interessante. Os faraós mortos tinham seus rostos enrolados em panos especialmente tratados para evitar que suas feições apodrecessem. Até hoje, os médicos não sabem qual era aquela fórmula química, por isso todos os nossos rostos apodrecem quando morremos por um certo período de tempo.


O velho Spencer olhou pra mim por cima da prova. Eu parei de olhar pra ele. Se ele fosse me olhar toda vez que terminasse um parágrafo, eu não ia mais olhar pra ele.


- Há muitas coisas sobre os egípcios que nos ajudam no nosso dia a dia, - disse o velho Spencer. Depois ele disse: Fim. Tirou a prova da altura da cara e o jogou na direção da cama. Errou feio, de novo. A cama estava a apenas uns sessenta centímetros da cadeira dele. Eu me levantei e coloquei minha prova em cima da Atlantic Monthly.


- Você me culpa por ter te reprovado, rapaz? - o velho Spencer me perguntou - O que você teria feito no meu lugar?


- A mesmíssima coisa, - eu disse - os idiotas que se resolvam - Mas na real eu não estava pensando no que eu tava falando naquele momento. Eu estava meio que me perguntando se a lagoa no Central Park estaria congelada quando eu chegasse em casa, e se estivesse congelada, se todo mundo estaria patinando no gelo quando você olhasse pela janela de manhã, e pra onde os patos iam, o que acontecia com os patos quando a lagoa estava congelada. Mas eu não podia contar tudo isso pro velho Spencer.


Ele me perguntou: Como você se sente com tudo isso, rapaz?


- Você quer dizer com eu ter sido reprovado e tudo mais, senhor? - eu disse.


- Sim - ele respondeu.


Bem, tentei realmente dar uma chance e pensar um pouco sobre isso porque o velho Spencer era um cara legal e tal e porque ele estava errando a cama toda vez que jogava alguma coisa nela.


- Bem, eu sinto muito por estar sendo reprovado, por várias razões, - eu disse. Eu sabia que nunca conseguiria realmente explicar pra ele essas coisas. Sobre ficar na colina Thomsen pensando no Buhler, no Jackson e em mim - Algumas das razões seriam difíceis de explicar de cara, senhor, - eu falei - Mas hoje à noite, por exemplo, - eu disse - Hoje à noite eu tive que fazer as malas e colocar as minhas botas de esqui nelas. As botas de esqui me fizeram sentir ainda mais arrependido por estar indo embora. Eu lembrei da minha mãe correndo pelas lojas, perguntando um milhão de coisas idiotas pros vendedores. Aí no fim das contas ela acabou me comprando a bota errada. Mas eu juro, ela é legal, viu? Sem brincadeira. É mais por causa disso que eu sinto muito por estar indo embora. Por causa da minha mãe e das botas de esqui erradas - Foi só o que eu disse. Eu tive que parar.

O VELHO Spencer estava assentindo o tempo todo, como se entendesse tudo, mas não dava pra saber se ele estava assentindo porque ia entender qualquer coisa que eu lhe dissesse, ou se ele só estava assentindo porque era apenas um velho simpático com gripe e uns anos de loucura na cabeça.


- Você vai sentir falta da escola, rapaz - ele me disse.


Ele era um cara legal. Sério. Eu tentei falar mais um pouco. Disse: Não exatamente, senhor. Vou sentir falta de algumas coisas. Vou sentir falta de ir e vir de Pentey de trem; voltar para o vagão-restaurante e pedir um sanduíche de frango e uma Coca, e ler cinco revistas novas com todas as páginas lisas e novas. E vou sentir falta dos adesivos de Pentey na minha mochila. Uma vez, uma senhora viu e me perguntou se eu conhecia o Andrew Warbach. Ela era mãe do Warbach, e você conhece o Warbach, senhor. Um verdadeiro canalha. Ele era o tipo de cara, quando você era criança, que torcia seu pulso para tirar as bolinhas de gude da sua mão. Mas a mãe dele era legal. Ela deveria ter ido parar em um hospício, como a maioria das mães, mas ela amava o Warbach. Dava pra ver nos olhos dela, meio esbugalhados, que ela achava que ele era o máximo. Então passei quase uma hora no trem contando pra ela como o Warbach era um sucesso na escola, como nenhum dos caras fazia nada sem antes passar pelo Warbach. Isso deixou a dona Warbach maluca. Ela quase rolou no corredor. Ela provavelmente meio que sabia, no fundo, que ele era um canalha, mas eu mudei a opinião dela. Eu gosto de mães. Elas me dão uma empolgação danada.


Eu parei. O velho Spencer não estava acompanhando. Talvez um pouco, mas não o suficiente para me fazer querer continuar. De qualquer forma, eu não estava dizendo muito do que eu queria dizer, mesmo. Eu nunca digo. Eu sou maluco. No duro.


O velho Spencer perguntou: Você pretende ir para a faculdade, rapaz?


- Não pretendo, senhor, - eu disse - Vivo um dia de cada vez - Soou bem fajuto, mas eu estava começando a me sentir meio fajuto mesmo. Eu estava sentado naquela beiradinha de cama há tempo demais. Levantei do nada.

- Eu acho que é melhor eu ir, senhor, - eu disse - Preciso pegar o trem. Você foi incrível. Sério mesmo.


Bem, o velho Spencer me perguntou se eu não queria uma xícara de chocolate quente antes de ir, mas eu disse que não, obrigado. Apertei a mão dele. Ele estava suando pra burro. Eu disse que escreveria uma carta pra ele algum dia, que ele não deveria se preocupar comigo, que não deveria deixar eu o deixar pra baixo. Disse que sabia que eu era maluco. Ele me perguntou se eu tinha certeza de que não queria nenhum chocolate quente, que não demoraria muito pra ficar pronto.


- Não, - eu disse, - tchau, senhor. E sara logo dessa gripe, tá?


- Sim, - ele disse, apertando minha mão novamente - Tchau, rapaz.


Ele me chamou alguma coisa enquanto eu estava saindo, mas eu não entendi nada. Acho que foi algo de boa sorte e tal. Essas coisas que velhos falam. Eu realmente senti pena dele, sério. Eu sabia exatamente o que ele estava pensando: como eu era jovem, como eu não sabia nada sobre o mundo, o que acontecia com caras como eu e tudo mais. Eu provavelmente o deixei triste por um tempo depois que saí, eu acho, mas aposto que depois ele conversou sobre mim com a senhora Spencer e se sentiu melhor, e provavelmente pediu para a senhora Spencer lhe entregar sua Atlantic Monthly antes que ela saísse da sala.


Era depois da uma da manhã quando eu cheguei em casa, porque eu fiquei batendo papo por uns trinta minutos com o Pete, o cara do elevador. Ele estava me contando tudo sobre o cunhado dele. O cunhado dele é policial, e ele atirou em um cara; ele não precisava, mas fez isso para se achar o machão, e agora a irmã do Pete não gostava mais de ficar perto do cunhado dele. Foi tenso. Eu não senti tanta pena da irmã do Pete, mas senti pena do cunhado dele, o pobre coitado machão.


A JEANNETTE, nossa empregada, me deixou entrar. Eu tinha perdido a porra da chave em algum lugar. Ela estava usando um daqueles bobs de alumínio no cabelo, prometendo diminuir o volume.


- O que cê tá fazendo em casa, guri? - ela disse - O que cê tá fazendo em casa, guri? - Ela sempre repete tudo duas vezes.


Eu estava bem cansado de as pessoas me chamarem de "garoto", “guri”, “rapaz” e derivados, então só respondi: Onde estão meus pais?


- Eles tão jogando carta, - ela disse - Eles tão jogando carta. O que cê tá fazendo em casa, guri?


- Eu vim ver o Sai - eu disse.


- Que Sai? - a tonta perguntou.


- O Sai já da minha frente Ha, ha, ha, - eu disse. Deixei minhas malas e o casaco no hall e me afastei dela. Coloquei o chapéu na parte de trás da cabeça e até que me senti bem, pela primeira vez na noite, e caminhei pelo corredor até abrir a porta do quarto de Phoebe e Viola. Estava bem escuro, mesmo com a porta aberta, e quase quebrei o pescoço tentando chegar até a cama da Phoebe.


Eu me sentei na cama dela. Ela estava dormindo, tranquilinha.


- Phoebe - eu disse - Ei, Phoebe!


Ela acordou rapidinho.


- Holden! - ela disse, ansiosa - O que você tá fazendo em casa? O que houve? O que aconteceu?


- Aah, a mesma velha história e tal - eu disse - O que você tem feito de bom?


- Holdie, o que você tá fazendo em casa? - ela disse. Ela tem só dez anos, mas quando quer uma resposta, meu amigo, ninguém segura.


- O que aconteceu com seu braço? - eu perguntei. Percebi um pedaço de fita adesiva no braço dela.


- Eu bati ele nas portas do armário - ela disse - A senhorita Keefe me nomeou Monitora do Armário. Eu sou responsável pelas roupas de todo mundo - Mas logo voltou ao assunto. - Holdie, - ela disse - o que você tá fazendo em casa?


Ela parece uma amorinha fofinha, né? mas é assim só comigo. Porque ela gosta de mim. Ela não é boba, não, meu amigo. A Phoebe é, com certeza, uma de nós, mesmo sendo só uma criança de dez anos.


- Eu já volto - eu disse a ela, e fui até a sala de estar, peguei uns cigarros de uma das caixas, coloquei no bolso, e voltei. Phoebe estava sentada, retinha, com uma carinha ótima. Eu me sentei na cama dela de novo.


- Fui expulso de novo - eu disse a ela.


- Holden! - ela disse - Papai vai te matar.


- Eu não pude evitar, Phoeb - eu disse - Eles ficavam me empurrando um monte de coisas, provas e tudo mais, e horas de estudo, e tudo era obrigatório o tempo todo. Eu estava pirando. Tô te falando. Eu simplesmente não suportava mais aquilo.


- Mas, Holden - Phoebe disse, - você não gosta de nada - Ela realmente parecia preocupada.


- Gosto, sim. Gosto, sim. Não fala isso, Phoeb, - eu disse - Eu gosto pra diabo de um monte de coisas.


Phoebe disse: O quê? Me diz uma coisa. Uminha


- Não sei. Caramba, não sei -  eu disse - Não consigo pensar em mais nada hoje. Eu gosto das garotas que ainda não conheci; garotas que você só consegue ver a nuca, sabe? Quando estão algumas cadeiras à frente de você no trem, sabe? Ah, gosto de um montão de coisas. Gosto de estar aqui com você. Sério, Phoeb. Eu gosto pra diabo de estar aqui com você.


- Vai dormir, Viola, - Phoebe disse. Viola tinha acordado - Ela passa direto pelas barras - Phoebe me contou.


Eu peguei Viola e a sentei no meu colo. Estava para nascer criança mais maluquinha que ela, mas ainda assim totalmente uma de nós.


- Holdie - Viola disse - faz a Jeannette me dar o Pato Donald.


- Viola xingou a Jeannette, e a Jeannette tirou o Pato Donald dela - Phoebe disse.


- O bafo dela é sempre ruim- Viola me contou.


- O hálito dela, - Phoebe disse - Ela disse pra Jeannette que o hálito dela estava ruim quando a Jeannette estava vestindo roupinha nela.


- A Jeannette fica soprando na minha cara o tempo todo - Viola disse, ficando em pé em cima de mim.


Eu perguntei para a Viola se ela tinha sentido minha falta, mas ela parecia não ter certeza se eu tinha saído ou não.


- Vai voltar pra cama agora, Viola - Phoebe disse - Ela passa direto pelas barras.


- A Jeannette fica soprando na minha cara o tempo todo e ela tirou o pato Donald - Viola me contou de novo.


- O Holden vai devolver pra você, tá? - Phoebe disse. Phoebe não era como as outras crianças. Ela não ficava do lado da babá.


EU LEVANTEI e levei a Viola de volta para o berço e a coloquei lá. Ela me pediu para trazer alguma coisa, mas eu não consegui entender o que.


- Ceitonas - Phoebe disse - Azeitonas. Ela está louca por azeitonas agora. Ela quer comer azeitonas o tempo todo. Ela apertou o botão do elevador quando a Jeannette saiu esta tarde e fez o Pete abrir uma lata de azeitonas pra ela.


- Ceitonas - a Viola falou - Traz ceitonas, Holdie.


- Tá bom - eu disse.


- Com o vermelhinho dentro - Viola disse.


Eu falei tá bom, mandei ela dormir e a cobri direitinho, aí comecei a voltar pra onde a Phoebe estava, mas parei tão de repente que quase doeu. Ouvi eles chegando.


- São eles! - Phoebe sussurrou – Tô escutando voz do papai!


Eu fiz que sim com a cabeça e fui andando em direção à porta. Tirei o chapéu.


- Holdie! - Phoebe sussurrou pra mim - Diz pra eles como você se sente com essa história toda. E que você vai se comportar melhor na próxima vez!


Eu só concordei com a cabeça.


- Volta! - Phoebe disse - Eu vou ficar acordada!


Eu saí e fechei a porta. Queria ter pendurado o meu casaco e guardado as malas num lugar melhor. Sabia que eles iam me dizer o quanto o casaco tinha custado caro e como as pessoas tropeçam nas malas e quebram o pescoço.


Quando terminaram de acabar comigo, voltei para o quarto das crianças. Phoebe estava dormindo, e eu fiquei olhando ela por um tempo. Menininha bacana essa daí. Aí fui até o berço da Viola. Levantei o cobertor dela e coloquei o tal do pato Donald lá dentro com ela; depois peguei umas azeitonas que eu estava segurando na mão esquerda e coloquei uma por uma em fila ao longo da grade do berço dela. Uma delas caiu no chão. Eu peguei, mas tava toda empoeirada, então coloquei no bolso do casaco. Então saí do quarto.


Fui para o meu próprio quarto, liguei o rádio, mas estava quebrado, pra variar. Então fui para a cama.


Fiquei deitado por um tempo, acordado, me sentindo um verdadeiro lixo. Eu sabia que todo mundo estava certo e eu estava errado. Sabia que não ia ser um daqueles caras bem-sucedidos, que nunca ia ser igual ao Edward Gonzales ou ao Theodore Fisher ou ao Lawrence Meyer. Eu sabia que dessa vez, quando meu pai falou que eu ia trabalhar naquele escritório, ele estava falando sério, que eu não ia voltar para a escola nunca mais, que eu não ia gostar de trabalhar em escritório e todo aquele papo de pai. Comecei a me perguntar de novo para onde os patos do Central Park iam quando a lagoa congelava, e, finalmente, dormi.

 


0 comentário

Comments


bottom of page