um passeio pelo fracasso
percurso:
Bas Jan Ader, «Fall II», 1970 Mary Sue Ader-Andersen
lerescutando
fracasso
substantivo masculino
-
1.
som estrepitoso provocado pela queda ou destroçamento de algo; barulho; estrondo.
"a casa desabou com um fracasso assustador"
-
2.
falta de êxito; malogro; derrota.
"o empreendimento foi um fracasso"
cartografia da queda
I - primeira queda que tenho lembrança
o fracasso enquanto o som da queda. este som surdo que cega. eu o conheço muito bem. tenho no nome sua qualidade mais severa. um verbo conjugado na primeira pessoa do singular. caio.
um homem-ensaio-sobre-o-despencar.
cair é flutuar - nem que seja por alguns segundos.
a primeira memória do surdo som da queda me remete aos três anos. pulava na cama como quem tenta tocar o teto com as mãos limpas. minha mãe havia dito que era possível voar se eu me concentrasse. quando reuni a coragem necessária para o salto que me levaria dali, senti o chão sumir da sola dos pés. as perninhas que fizeram-se molas não foram capazes de se tornar mais leves que o ar. lembro apenas de cair inclinado, cabeça para o chão, testa no rejunte do piso.
o gosto e o cheiro do vermelho quente a escorrer pela minha testa. do grito eu só lembro que esquentou a garganta. lembro que rezei um pai nosso quando medicos me davam 12 pontos na cabeça.
a cicatriz as vezes dói.
II - segunda queda escolhida a dedo
aos 10 anos desenvolvi uma obsessão por pular muros.
assisti em um canal da tv a cabo sobre um novo esporte francês chamado Le Parkour e decidi dedicar o meu tempo infantil para aquilo.
comecei arrastando a cama da parede e com a ajuda de uma cadeira, pulava de uma a outra.
era uma sensação estranha e nova.
lançar o corpo para cima - flutuar - sentir o impacto do corpo no chão - arriscar o equilíbrio
foi numa terça que decidi pular o muro de casa.
eu tinha chego da escola e não havia ninguém para me abrir. olhei para as grades do portão. lembro de pensar em nada, apenas na sensação de que minha mão e joelhos iam para o lugar que tinham que ir quando buscava apoio.
senti os pés queimando quando tocaram o chão, mas os joelhos aliviaram quase tudo, se fazendo de molas inaugurais. daquele dia em diante eu nunca mais parei. pulava sempre o muro de casa e invadia casas abandonadas para ver o que tinha lá dentro.
nesse tempo conheci amigos que também queriam pular o mundo e montamos um grupo. lembro que fomos banidos do sesc de tanto pular o corrimão de guardar bicicletas. naquela altura já sabíamos fazer os passos com mais certeza
e meu corpo já respondia muito bem ao impacto e ao equilíbrio.
quando caí de um muro de 5 metros e tive que fazer uma prova de matemática em seguida, tudo ficou estranho. a queda foi dolorosa e nenhuma técnica me salvou. 2 meses com gesso e um tanto de metatarsos quebrados.
III - a última queda
pulei da sacada do prédio onde morava.
daquela queda em diante, tudo virou meia-noite.
ali compreendi o que era o ofício de um ícaro. a vontade de respirar uma nuvem - e ela nunca vem.
foi como se a gravidade e o meu corpo fossem testados da forma mais selvagem possível.
obriguei meu corpo a ficar vivo - parece ter funcionado.
A queda dos corpos é inevitável. Está na natureza das coisas. Tudo acaba caindo um dia ou outro: chuva, neve, as frutas maduras, as folhas mortas… Os objetos que nos cercam escapam provisoriamente a esse destino pois são mantidos artificialmente. A queda permeia tanto nossas vidas ao ponto de portar, como sentido metafórico: a ruína do homem, a queda do Império romano. Como no dito popular: quanto maior a altura, maior será a queda.
(SIGNORE, 2008, 1)
a solidão da superfície
chão nunca antes pisado. grama onde ninguém nunca deitou. pedra nunca arremessada no lago. arvore sem iniciais talhadas. folha onde ninguém escreveu. montanha nunca escalada. morro nunca descido. cachoeira nunca banhada. caverna sempre esquecida. pele onde ninguém tocou.
existem muitas maneiras de tocar uma superfície. um milhão de formas de se trocar calor.
minhas mãos foram aparelhadas para um toque muito leve, um quase flutuar. a troca mínima e exata de calor. chamo de carinho. a violência que sofri sempre me privou de usar mais força. sei que a superfície das minhas palmas é escassa de tapa. foram poucas as vezes que espalmei num corpo a minha furiosa onda de calor.
tenho pensado em Bas Jan Ader e seu linguajar com as superfícies.
é ele o motivo disto tudo aqui.
imaginar o homem dependurado em um galho alto acima de um rio.
movimentos insones.
ele cai e tudo chega ao fim.
um toque diferente de tudo que se há.
que ao invés de voar, busca cair.
há nestes constantes caíres um certo anúncio da impotência. uma delicada forma de fracassar. de render-se a luta contra a gravidade. firmar o destino ao chão.
há também a descoberta
de uma assombrosa força
que amplia a respiração
dimensiona os músculos e
cria um corpo outro
que,
ao se soltar,
vai se remodelando
até tocar
a superfície
Broken fall (organic) – Bas Jan Ader, 16mm, duração: 1 min 44 sec.
encontro neste cair tantas repostas que parece ser tudo uma grande mentira
encontro neste cair tantas repostas que parece ser tudo uma grande mentira
como a queda consegue remexer tantas coisas assim?
como é possivel que o fracasso remodele o jogo e traga a tona um milhão de novas espécies de carinho?
o meu menino olha para os joelhos ralados e grita ao ver a pele rasgada. ?!que estou aprendendo vendo meus tecidos se desfazendo?!
cair é parar de dizer não.
arrisco dizer que, talvez, o fracasso seja dizer sim para tudo o que existe.
como abrir os braços no meio da vida e deixar que venham a você todas as coisas que são suas. fortunas e quimeras.
fracasso é uma professora rígida
uma força benevolente
um grande sim
a simplicidade que existe em uma queda te revela os mistérios que a ascensão não menciona.
que joelhos podem sangrar. que ossos podem quebrar. que cartas de amor podem ser recusadas.
que a vida acontece independente do seu querer. mesmo que você tenha sonhado a vida toda com aquele momento que parece estar acontecendo agora e subitamente vai se desfazendo no ar. é essa a mão do fracasso num delicado afago. é como se dissesse "veja agora o que antes não via".
e antes que saia
o elogio tem tanta paixão quanto a vaia
é tudo calor, força e som
portanto:
caia.
o 'nada permanece' como um 'tudo se reorganiza',
já diria sedranas.
roken fall (geometric) – Bas Jan Ader, 16mm, duração 1 min 49 sec.
Bas Jan Ader, «Fall II», 1970.
caio ribeiro,
SOL, 2021